terça-feira, 22 de novembro de 2011

SUPERBONDER OU DUREPOXI?

Outro dia resolvi colocar ordem na minha cristaleira. Tirar o pó, lavar as porcelanas e cristais, reorganizar todas as peças... Incrível como isso me faz bem. É um momento de profundo recolhimento. Ninguém pode fazer por mim, não delego esta função para absolutamente ninguém. Pensando bem, gosto mesmo de fazer isso sozinha, eu e minhas porcelanas, eu e minhas lembranças. Levo horas olhando cada detalhe como se fosse a primeira vez. E lembro de coisas que pareciam perdidas no breu do esquecimento. Uma a uma as delicadas peças vão me trazendo para um mundo encantado,  nem sempre prazeiroso, de recordações. Minha vida naquela cristaleira...
Por mais que tome cuidado com o que lá guardei, impossível não me surpreender. Neste dia encontrei coisas que nunca imaginei estarem ali. Como foram parar ali? Não faço a mínima idéia! Não lembro de ter colocado uma notinha de supermercado enroladinha dentro de um copo, uma vela queimada, um palito de dente, um pedaço de fita adesiva sem cola... Fiquei incomodada. Quem mexeu na minha cristaleira? Quem colocou coisas tão sem importância no meio das minhas porcelanas? Fiquei realmente incomodada. Depois resolvi olhar com calma aqueles sinais de invasão de privacidade. O papelzinho tinha uma marca, parecia cera de vela... acho que é a cera de vela sim! O palito de dente tinha algo na ponta... seria cola? E a fita adesiva devia estar colada em alguma coisa e com o tempo se descolou...
Talvez por cacuete da profissão, ou simples curiosidade, passei a procurar alguma peça, qualquer que fosse, com a marca da fita adesiva. Tinha certeza que ia desvendar aquele grande mistério da invasão da minha cristaleira. Tirei tudo, peça por peça, procurando incansavelmente. Era uma missão quase impossível, eu estava me sentindo saída de um livro da Agatha Christie!
Mas... qual meu espanto... lá estava a prova do crime... Bem no cantinho escondida por uma pilha de pratinhos de sobremesa, estava tímida e encolhida uma pequena xícara. Não estava junto com suas irmãs, talvez por pensar que não seria bem vinda. Mas lá estava ela, testemunha solitária de uma história impossível de ser recontada. Peguei a pequena xícara nas mãos, e olhei atentamente. Ela fora quebrada. Não se trata agora de saber quem a quebrou, isso não importa mais. Mas é certo que foi alguém que olhou para minha cristaleira com amor e respeito pelos meus sentimentos. Alguém que tentou desesperadamente não me magoar (imagino o sentimento de culpa), colando os caquinhos do seu deslize. Alguém que usou superbonder, que colou os dedos junto (eu sempre colo meus dedos), que usou a fita adesiva para ajudar a segurar as partes unidas. Talvez tenha feito isso no escuro da noite, com a vela acesa sobre aquele papelzinho de supermercado. Provavelmente usou o palito de dente para ajudar na colagem... Com certeza foi alguém que sabia da importância daquela pequena xícara.
Verdadeiramente me senti aliviada e confortada. A marca do que se quebrou nunca seria desfeita, assim como não se desfazem nossas cicatrizes quando alguém nos machuca. Mas saber o que aconteceu é a única forma de perdoar. E o perdão só acontece quando finalmente entendemos que as cicatrizes vão permanecer. Não existe esquecimento no perdão. Existe apenas o perdão. E com o perdão, o alívio.
Aquela estranha cicatriz de superbonder na minha xícara me fez refletir nas muitas vezes que minha alma de porcelana foi arranhada, quebrada, tornada em cacos. Na maior parte das vezes foi possível juntar e colar... refazendo o que se quebrou e passando a ostentar um bela cicatriz de aprendizado. Acredito que a cicatriz seja uma marca necessária, aquela que diz que você teve uma história.
Mas algumas vezes os cacos da alma de porcelana são impossíveis de serem resgatados e tenho que abrir mão dos menores, aqueles quase imperceptíveis que seguem incomodando, fincados na carne de nossos pés descalços. Sabemos que estão ali quando nos cutucam indesejáveis na sola do pé. A dor fininha e irritante nos faz parar, procurar uma pinça e... tentar arrancar o caquinho da carne. Mais um alívio! É o perdão entrando em ação! Acaba o choro pela porcelana quebrada! Fica a saudade e a certeza de que é hora de recomeçar, pegar os cacos que ainda tem algum sentido e... escolher. Escolher entre jogar fora os cacos com o devido cuidado para não machucar alguém com nossa dor, ou pegar durepoxi. Durepoxi? Sim, durepoxi para os caquinhos da alma de porcelana. Afinal eles podem e devem ser ressignificados, recolocados, e formar um desenho novo, um mosaico de porcelana em que as cicatrizes e partes quebradas se transformam em cores e imagens de nossa história.
Muitos caquinhos juntos formam um belo mosaico a  que chamamos de... maturidade!
Cladismari Zambon

3 comentários:

  1. Lindo texto Cladis...



    Fiquei imaginando meu cacos que tentei colar mas parece que determinados materiais não aceitam nenhum tipo de cola... mesmo assim você insiste tenta colas diferentes e no final percebe que o trabalho foi em vão, após alguns minutos segurando, tudo se parte de novo... será que vale a pena procurar outra cola ou se conformar com os pedaços partidos...?

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  2. Isis

    Alguns pedaços não podem ser colados mesmo, e a gente tem que descobrir um outro lugar menos doloroso para colocar. Alguns cabe apenas varrer e colocar fora, outros guardar quebrados para quem sabe um dia encontrar significado num novo mosaico. Nenhum trabalho é em vão! Só não vale jogar para baixo do tapete como se não existissem pois eles mais cedo ou mais tarde aparecerão fincados na carne dos pés descalços. O importante é saber que eles existem, que sempre existirão. São fragmentos de vida! Aprenda com eles, busque significado e, acima de tudo, recomece.

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  3. Maria de Nazaré (Naná)28 de novembro de 2011 às 17:02

    Cladis, profundo e verdadeiro ao extremo, principalmente quando você menciona sobre o perdão. Tenho aprendido muito o quanto esta pequena palavra, quando realmente colocada em prática, pode mudar nossas vidas.
    Adoro os seus textos!!
    Bjs e saudades!!!

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