quinta-feira, 12 de abril de 2012

O TEMPO E O PÓ


Hora de tirar o pó da cristaleira... Faz tempo que não olho para ela, envolvida em tantas outras atividades e preocupações... O dia a dia se encarrega de encher a cristaleira de pó, fragmentos que vêm no ar e nem sempre nos damos conta que estão sendo depositados lá. Simplesmente parece que brotam entre minhas porcelanas. Eu não permiti que viessem, até tentei manter as portas da cristaleira fechadas mas... lá estão eles. Minúsculos fragmentos de coisa nenhuma que, juntos, formam uma cobertura incômoda sobre tudo que guardei com tanto zelo. Isso me faz pensar em mil coisas... Será que existe uma forma de vedar as frestas para não permitir entrar o pó? Será que existe uma forma de isolar o meu interior de tudo aquilo que insiste em me invadir e se instalar? Esse pensamento soa assustador... é de um isolamento profundo que desemboca numa solidão consentida e um narcisismo dilacerante. Pensar em congelar o tempo em lembranças intocadas, tornar sagrado o que é material e profano, santificar minhas experiências humanas... Confesso que já pensei nisso e talvez alguns de vocês também já tenham desejado se tornar intocáveis. Felizmente a poeira fininha do dia a dia me conduz de volta para a realidade. As porcelanas estão guardadas sim, mas a vida continua e a poeirinha que se deposita ali mostra que existe movimento até onde o vento não alcança. É como pegar um velho álbum de fotografias e percebê-las amareladas. É como se observar em um velho espelho turvo (igual o da minha cristaleira) e perceber que o tempo não é seu inimigo... ele apenas não permite que você congele de forma fria e inerte... existe vida no tempo... existe vida no passar do tempo... existe vida em cada fragmento de poeirinha depositado em minha alma de porcelana.
E assim, com uma flanela macia e acolhedora que a experiência me permitiu escolher, vou desvelando cada peça guardada, removendo a fina cobertura de pó de vida que ali se depositou. É apenas pó, posso sacudir na janela e o vento (sempre o vento) se encarregará de espalhar em outras porcelanas que talvez nem se apercebam de sua existência. Já cumpriu seu papel na minha cristaleira... é hora de levantar voo... Afinal, um dia voltarei a ser parte deste pó de vida...
Tu és pó e ao pó tornarás (Gn 3:18)
Cladismari Zambon

 

4 comentários:

  1. Gostei. Já estava sentindo falta dos teus textos.
    Abraço. Walter

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  2. Oi Cladis!
    É exatamente como relatastes. Não nos damos conta, achamos que nossa porcelana está protegida de tudo quando depositadas dentro da cristaleira, mas não é bem assim que acontece.
    E quando percebo a fina camada de pó, resquício do que ainda não foi, apesar de eu jurar a mim mesma que sim, sinto-me impotente, e, como você, com uma flanela macia e acolhedora, dou início a remover esta fina camada de pó, que poderá voltar a assombrar minha cristaleira a qualquer momento.
    Queria saber como lidar melhor com isso. Apesar de tentar incansavelmente ainda não consegui.
    Mais uma vez... um belo texto para a reflexão.
    Beijo grande e parabéns!
    Suzane Monteiro

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  3. Suzane
    O pó sempre vai existir, e é bom que exista pois é sinal que existe alguma abertura por onde circula a vida. Basta sacudir a flanela na janela (outra abertura para a vida) que as porcelanas voltam a apresentar o brilho e a leveza que são característicos de tudo que tem valor. Aproveite para apreciar o mundo através desta janela... tudo que se fecha para o pó também se fecha para a vida!
    abraço
    Cladis

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  4. Cladis,
    Rendo-me às tuas palavras!
    Quão amadurecida és, enquanto eu ainda engatinho em busca de minha inteligência emocional, apesar da distância mínima em nossa idade cronológica.
    Dei início a um novo ciclo em minha vida, graças às tuas sábias palavras.
    Beijo grande!
    Suzane Monteiro

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