quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

ESPAÇO VAZIO...

Qual a dimensão das coisas na minha vida? Quando digo coisas me refiro a objetos mesmo, aqueles que se deixam tocar pelas minhas mãos curiosas. Casa, carro, roupas, sapatos (adoro sapatos), um brinco novo... coisas. Vivo sem elas? Com certeza sim, mas não quero! Todos temos objetos dos quais não abrimos mão. Não nascemos com eles, mas colecionamos objetos ao longo da vida. É só abrir o maleiro dos guarda-roupas para ver a quantidade de coisas que guardamos para nunca mais usar. A possível necessidade futura justifica minha coleção, é claro! Mas se ficou lá por dois, três, dez anos... sem que eu precisasse ou nem sequer lembrasse... por que guardei? Por uma única razão... medo. Cheguei à conclusão de que eu tenho medo de um espaço vazio no guarda-roupa tanto quanto tenho medo de um espaço vazio dentro de mim... É possível suportar os espaços vazios sem ter que preenchê-los imediatamente? E quando as coisas se vão de minha vida contra a minha vontade? Que sensação de perder um pedaço de mim mesma, que tentação de substituir imediatamente... É possível substituir? É possível repovoar o espaço vazio?
É aí que me pego refletindo... E quando coisas e pessoas se confundem? Qual a dimensão das coisas-pessoas na minha vida? Nossa, que pensamento doloroso... coisas-pessoas ou dito de outra forma... pessoas que foram coisificadas em minha vida para preencher meus espaços vazios que tanto me amedrontam... Parece familiar? Faz muito sentido para mim, cuja solidão é suportada pela minha própria ausência de mim mesma. E deve ser assim. É a solidão dos meus espaços vazios que só podem ser preenchidos por mim mesma. Se um dia eu tentar (e com certeza fiz isso muitas vezes) preencher esse espaço com alguém, esta pessoa se tornará um objeto (pessoa-coisa) em minha vida. Nunca poderá me faltar, nunca poderá se afastar, nunca poderá falhar. E quantas vezes já fiz isto... 

Alguns espaços vazios devem ficar assim mesmo... vazios... Disponíveis para minha própria movimentação interna. Disponíveis para experimentar coisas novas, disponíveis para o meu crescimento. Então vem uma palavra muito moderna nos dias de hoje... desapego. Essa palavra me dá arrepios! Em nome do tal desapego as pessoas não se apegam mais, não se vinculam, não se envolvem. Para desapegar é necessário primeiro apegar-se, envolver-se, permitir-se tocar pelo outro que aos poucos ocupa um espaço que nunca foi vazio de todo pois sempre foi ocupado por mim mesma. Somente assim pode-se viver o outro enquanto pessoa, um ser subjetivo e completo que empresta em sua passagem algo de si para mim. Não por obrigação ou por força de preencher o espaço vazio de sua existência, mas por simples permanência e desejo.
Vou recorrer a uma analogia que já usei em outro texto, em outro tempo. Num tempo em que estava refletindo sobre o ser mulher na presença do outro. É um texto que fala da diferença entre a mariposa e a borboleta. Existem várias espécies de mariposas, noturnas, grandes, belas, que vivem nas sombras e aparentemente se alimentam de uma única fonte de luz. A mariposa escolhe uma fonte de luz que lhe confere motivo e razão de viver. E sua vida passa a ser aquela lâmpada acesa, fonte de sua energia, de onde tira (suga) o que necessita para viver. Voa em torno dela e, se a luz se apaga, pousa imóvel aguardando que se acenda novamente. Imagine ser uma lâmpada (pessoa-coisa) para essa mulher-mariposa (também conheço homens assim). Essa luz pode ser um companheiro, um filho, uma empresa, enfim... qualquer coisa que dê total sentido para a existência desta mariposa. Não pode haver falha, não pode se esgotar e deve se deixar “sugar” para que a mulher-mariposa possa continuar viva. É uma relação de dependência mútua, onde um 
não vive sem o outro, onde um é absorvido pelo outro, onde luz e mariposa passam a viver num ciclo de cobranças, chantagem e culpa. Não é uma relação de amor, é uma relação de dependência e medo de perder, onde nenhum dos dois cresce, e fatalmente com o tempo a luz perde a força e a mariposa morre. Resultado... frustração e vazio... 
E a borboleta? Essa é colorida, única. Ela adora a claridade, as flores, adora a vida. A borboleta encanta por onde passa, ela é alegre, ela fertiliza, ela é clara, ela empresta suas cores e sua alegria para o mundo. Uma borboleta tem várias fontes de alimento, varias flores, e com isso ela estabelece uma relação de troca por onde transita. Não se precisa temer uma borboleta. Mas se tentar aprisiona-la, ela morre. Assim é a borboleta. Para se tornar uma borboleta deve passar por transformações importantes – um processo de reclusão dentro de si mesma a que chamamos de metamorfose – até virar um indivíduo adulto. A mulher-borboleta (serve também para os homens) igualmente passa por transformações. Ela precisa amadurecer e encontrar dentro de si a beleza e a alegria de viver. E oferecer isso para as flores que a cercam – filhos, companheiro, amigos, colegas, etc. – distribuindo atenção e recebendo de cada um conforme o que cada um tem pra dar. Isso não sobrecarrega uma só fonte de luz, como no caso da mariposa. Essa relação é uma relação de troca onde o amor pode acontecer e se manter. Uma relação de complementariedade, sem culpas e sem cobrança. A mulher-borboleta é capaz de sorrir e brincar, mas também é capaz de trocar de flor ou até de jardim... A luz que se apaga não apaga seu colorido, apenas a faz avaliar e resgatar o verdadeiro valor que tem dentro de si mesma. Flor e borboleta são complementares, vivos, e cheios de cores. Flor e borboleta estabelecem uma relação de amor.

E aí volto meu pensamento para a pergunta inicial: Qual a dimensão das coisas na minha vida?
Em que momento sou mais mariposa vendo nas pessoas o que me falta para preencher os espaços vazios? Estes espaços se traduzem naquela voz infantil que sussurra no meu ouvido: “estou sozinha, estou triste, estou com medo”... 

Quantas pessoas-coisas transformei em lâmpadas permanentemente acesas para acalmar meus medos? E quantas vezes fui eu mesma lâmpada para outras mariposas? Tudo o que eu precisava era que a lâmpada se apagasse para me recolher para dentro de mim mesma, redimensionar meus espaços vazios, rever meus medos e... num milagre de renovação, conduzir a voz infantil que sussurrava em meu íntimo para a luz. Não a luz de mais uma lâmpada, mas a luz do conhecimento. A luz do crescimento. A luz que sempre esteve ali conferindo cores e brilhos em minhas asas. Não quero ser mariposa, e também não quero ser lâmpada. Quero ser borboleta e quero ser flor... Quero permitir o espaço de liberdade (não mais espaço vazio) por onde a verdadeira vida pode acontecer. Quero isso hoje, quero isso amanhã, quero isso sempre. Isso é desapegar-se de mim mesma, de minhas lâmpadas arcaicas e infantis, para ver no outro o que o outro pode finalmente ver em mim...
Cladismari Zambon

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

BORRA DE CAFÉ


Tem uma palavra que sempre me acompanhou... saudade. Desde sempre e para sempre a saudade faz parte da minha vida. Quando pequena aprendi que saudade é um sentimento dolorido por uma pessoa que gostamos mas não está presente. E como doía! Tinha saudade até de pessoas que ouvia falar mas nunca tinha visto. Com o tempo essa palavra foi ganhando outro significado e passei a reconhecer neste sentimento uma experiência única, pessoal e indispensável. Descobri que a saudade é inerente ao ser humano, que eu sinto e gosto de sentir saudade e que a saudade é o elo que me mantém ligada a tudo aquilo que faz de mim a pessoa que sou hoje. A saudade não é melancólica, não é triste, ela apenas traz de volta recordações, imagens que não podem se perder de mim. Ou eu não posso me perder delas...
E agora nos aproximamos do período em que as recordações nos assaltam de todas as formas. Fim de ano, festas, família... pessoas que não estão presentes... saudade. A mídia se encarrega de deixar nossas lágrimas sempre na beirinha da garganta... E a saudade... essa palavra é a única capaz de traduzir o coração apertado, o pensamento em outros lugares, em outras épocas. É a única capaz de dar um nome para as lembranças carregadas de sentimentos que nos afloram. Mas... alguém quer ficar sem elas? Quem se arriscaria a abrir mão delas? As pessoas que amamos não ficam eternamente ao nosso lado... infelizmente. Ficam as lembranças e saudade... muita saudade. E agora fazemos um balanço do ano que termina e vemos que elas nunca se foram totalmente, permanecem nos dando esperança e conforto. Não se tem saudade do que não foi bom... se permaneceu é porque marcou... marcou o coração e alma...
Este ano foi interessante para mim... longe de pessoas que amo, muitas viagens, conheci muitas pessoas em muitos lugares. Cresci muito, aprendi muito e minha cristaleira se enriqueceu de tantas histórias que nem sei como acomodá-las todas. Também foi um ano de algumas perdas mas sei que mesmo estas fazem parte do meu caminho de amadurecimento e vida. A cada perda... um recomeço. A cada recomeço... a chance de fazer diferente, de aprender mais e crescer. 
Mas... como lidar com o desconhecido que se apresenta a cada dia? A cada recomeço? O que eu conhecia era confortavelmente incômodo, mas era conhecido. É disso que tenho saudade? Não, claro que não. Mas também é! Saudade do conforto que sempre me lembra retorno ao lar e ao colo conhecido (mas já pequeno) da minha família. Colo que sempre vou buscar em todos os recomeços... que sempre acontecerão e se sucederão.
Então penso agora que saudade não me liga ao passado, ao que se foi de minha vida... Saudade me liga ao que virá, me liga a uma busca de recomeçar sem perder o que sempre busquei e vou continuar buscando. Saudade me liga ao futuro ao trazer essas recordações tão impregnadas na minha alma de porcelana. É como se eu buscasse em cada marca da minha xícara pistas do que vai acontecer... como uma leitura do futuro através de marcas de minhas saudades. Ouvi dizer que algumas pessoas têm o dom (ou a sensibilidade) de ler o futuro através da borra do café no fundo de uma xícara. Mas o que é a borra no fundo da xícara além de uma marca de algo que já se foi (o café) em minha experiência de vida? É o passado ditando meu recomeço, apontando caminhos, aliviando minha ânsia pelo desconhecido. Então... basta olhar para dentro de minha alma de porcelana que já não é tão branca e ler verdadeiramente o que a borra do café de minhas experiências tem para me dizer. Recomeçar com base nos acertos e erros que fizeram de minhas saudades uma vida de amor e fé. Fé no futuro que começou mesmo antes de eu nascer... minhas respostas estão todas lá... é só saber ler a borra de café no fundo de minhas saudades. 
Cladismari Zambon

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

ESPELHO TURVO DA ALMA DE PORCELANA

Já falei algumas vezes da minha cristaleira, e do que guardo dentro dela. O que talvez vocês não saibam é que minha cristaleira tem um espelho no fundo, já todo pipocado, com as bordas escurecidas pelo tempo. É uma cristaleira antiga, feita para passar de geração em geração. Poderia ter trocado o espelho quando a ganhei, mas não o fiz. Sabem por que? Porque aquele espelho já refletiu muitas almas de porcelana, como reflete a minha agora. Posso discorrer horas sobre esse assunto. Afinal, a imagem refletida foi tema de um grande amor da minha vida... meu mestrado. Mas não quero teoria agora. Quero sentimento e vida. Seria o mesmo que pegar um bebê no colo e, ao olhar os olhinhos dele, dizer pomposamente... “Winnicott descreve o teu olhar como busca da certeza da tua própria existência”. Pouco importa o grande psicanalista que foi Winnicott, ou tudo que ele brilhantemente escreveu. Isso mataria o bebê que está vivendo aquele momento com toda intensidade que só um bebê é capaz de viver... mataria a essência dele... e a própria certeza de sua existência. O que faz aquele olhar ter sentido para o bebê não é a teoria (que poderia ter sido proposta por outros autores e outras abordagens) mas sim o fato de que aquele olhar é um olhar procurado, esperado e desejado. É um olhar que explica o que não tem explicação.
Difícil? Não, todo mundo sabe isso nas entranhas. É uma certeza. Eu preciso do olhar do outro que me confirma o que vejo no espelho da minha alma. Minha auto-estima está ligada à aprovação do olhar do outro. Minha vaidade é assegurada pela aprovação do outro. Meus erros são marcados pelo olhar do outro. Mas não posso viver em função disso, porque isso é a própria estagnação e morte do ser humano. É como se eu entrasse na minha cristaleira e me contentasse apenas com a minha imagem no espelho escurecido de minha história. Por isso não troquei aquele espelho escurecido da cristaleira antiga... porque ele fala muito mais do que eu posso ouvir. Ele fala de mim, fala de você, fala da própria experiência de ser. Fala do pensar e com isto me faz pensar.
Eu conheço pessoas que passam a vida procurando um espelho. Procurando o próprio reflexo de sua existência na aprovação e no olhar do outro. Mas não é qualquer reflexo que lhes serve...  apenas o reflexo que não o tire da zona confortável do não pensar. E assim seguem a vida, trocando de espelho sempre que alguma marca escurecida de história começar a turvar sua visão, forçando a olhar para dentro de si mesmo, para dentro da sua cristaleira. É em vão tentar lavar esse espelho, assim como é em vão tentar “lavar a alma” com a bebida, com trabalho ou com emoções transversas. Não se lava a alma da porcelana. Apenas se lava a sua superfície. Mas algumas marcas ficam, independente da água e sabão. 
E o espelho turvo, com as bordas escurecidas, está lá, ao fundo da minha também envelhecida cristaleira. Envelhecida mas não velha, pois o tempo apenas a torna mais bonita, rica e interessante. Mesmo num tempo em que os números falam mais alto que a experiência... mesmo  num tempo em que se tenta desesperadamente trocar de espelho para não ver a própria historia desfilando na frente dos olhos, no fundo da cristaleira. Mesmo nesse tempo de emoções imediatas e passageiras em que as pessoas não buscam mais a própria existência no olhar do outro com medo de ter que devolver o olhar... e se envolver. Mesmo assim, o espelho turvo com as bordas envelhecidas está lá. E num momento qualquer a própria vida se encarrega de mudar tudo... a visão fica turva e é necessário parar, rever conceitos, revisitar a cristaleira antiga e suas marcas estarão todas lá... tingindo de vida e sentido sua alma de porcelana. E o espelho turvo com bordas escurecidas de vida passa a refletir exatamente tudo o que preciso... experiência, crescimento e vida... muita vida!

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A XÍCARA E O CHÁ

Na minha cozinha tem uma caixa feita de palha trançada muito bonita, que ganhei em uma de minhas viagens para Belo Horizonte. Um grupo de pessoas especiais me presenteou após alguns dias de trocas de experiências que alguns chamam de trabalho. Esta caixa veio recheada de coisas boas, típicas do povo mineiro sempre acolhedor e extremamente caloroso. Os doces e bebidas acabaram rapidinho e ficou aquela linda caixa na minha cozinha, guardiã das minhas recordações de Minas. Agora ela tem um lugar de destaque e uma função ímpar. Passou a ser a guardiã de aromas e sabores... meus chás! Adoro chá! Tenho vários, de vários tipos, marcas, sabores e lugares. Me encanta a variedade, a beleza e a simplicidade do chá. O prazer de tomar uma xícara de chá é único. Faço disto um ritual de auto-contemplação e encontro comigo mesma. Algumas pessoas já tomaram chá comigo, outras me acham meio maluca ou fresca demais e me retribuíram o convite do chá com uma convocação para tomar uma cerveja redentora de minha loucura. Mas eu creio que são situações diversas, tem o momento do chá e o momento da cerveja. Posso abrir mão da cerveja, mas não abro mão do chá.
Ontem a noite, chegando em casa depois da uma longa e pensativa caminhada, tomei um banho relaxante e libertador. Preparei a mesa do chá... escolhi a toalha, a xícara e abri cuidadosamente minha caixa de chás. Percebi naquele momento que eu sempre tomava o mesmo chá, um chá de sabor e aroma conhecidos e muito apreciados. O mesmo chá de marcas diferentes, por vezes composto de outras ervas, mas o sabor que eu conhecia e buscava estava ali, e eu o reconhecia sempre. Fiz algumas tentativas com novos sabores, mas sempre voltava para o mesmo chá. Minha xícara de porcelana e aquele chá.
Mas ontem não. Ontem cheguei em casa querendo outro sabor e outro aroma. Outra cor naquela xícara de porcelana branca. E busquei em minha caixa de palha trançada, guardiã de aromas e sabores, um chá novo. Não queria algo totalmente novo, acho que depois de tanto tempo isso seria difícil de encontrar na minha caixa-guardiã. Mas queria algo diferente, marcante e único naquele momento. Lembrei de uma caixa de chá ainda fechada, uma caixa de chá de laranja com cravo e canela que sempre sorria para mim quando abria a caixa-guardiã de aromas e sabores. E por que não? E naquela mesa cuidadosamente preparada minha xícara de porcelana branca encontrou o chá de laranja com cravo e canela. Um encontro tímido mas muito prazeiroso. Experimentei  o prazer da mudança, o prazer da página virada, o prazer de me permitir uma pequena abertura para o novo.
E assim o encontro da xícara de porcelana branca com o chá de laranja com cravo e canela finalmente aconteceu. Numa aproximação lenta e cuidadosa, fui me deixando tocar pelas sensações que aos poucos fui reconhecendo como já sonhadas. Talvez porque as sensações sejam recriadas a partir de outras sensações que já experimentamos antes. Ou são evocadas de nossos desejos. Ou simplesmente elas nos pertencem desde sempre. Sei lá, não importa de onde elas vieram. Elas simplesmente estavam ali. E fui me deixando tocar pelo aroma marcante de cravo e canela que sempre me fascinou. Fiquei alguns minutos apenas me permitindo esse momento...
Tentei em vão recriar essa imagem em palavras. Não foi possível, ainda não está fixada, registrada de forma suficiente em minha alma de porcelana. Talvez seja um momento único, para ser lembrado apenas. Não importa. Com certeza nos deixamos tocar por pouca coisa, suficiente porém para marcar o momento como um beijo inocente do encontro da xícara de porcelana branca com o chá de laranja com cravo e canela.
Cladismari Zambon

terça-feira, 22 de novembro de 2011

SUPERBONDER OU DUREPOXI?

Outro dia resolvi colocar ordem na minha cristaleira. Tirar o pó, lavar as porcelanas e cristais, reorganizar todas as peças... Incrível como isso me faz bem. É um momento de profundo recolhimento. Ninguém pode fazer por mim, não delego esta função para absolutamente ninguém. Pensando bem, gosto mesmo de fazer isso sozinha, eu e minhas porcelanas, eu e minhas lembranças. Levo horas olhando cada detalhe como se fosse a primeira vez. E lembro de coisas que pareciam perdidas no breu do esquecimento. Uma a uma as delicadas peças vão me trazendo para um mundo encantado,  nem sempre prazeiroso, de recordações. Minha vida naquela cristaleira...
Por mais que tome cuidado com o que lá guardei, impossível não me surpreender. Neste dia encontrei coisas que nunca imaginei estarem ali. Como foram parar ali? Não faço a mínima idéia! Não lembro de ter colocado uma notinha de supermercado enroladinha dentro de um copo, uma vela queimada, um palito de dente, um pedaço de fita adesiva sem cola... Fiquei incomodada. Quem mexeu na minha cristaleira? Quem colocou coisas tão sem importância no meio das minhas porcelanas? Fiquei realmente incomodada. Depois resolvi olhar com calma aqueles sinais de invasão de privacidade. O papelzinho tinha uma marca, parecia cera de vela... acho que é a cera de vela sim! O palito de dente tinha algo na ponta... seria cola? E a fita adesiva devia estar colada em alguma coisa e com o tempo se descolou...
Talvez por cacuete da profissão, ou simples curiosidade, passei a procurar alguma peça, qualquer que fosse, com a marca da fita adesiva. Tinha certeza que ia desvendar aquele grande mistério da invasão da minha cristaleira. Tirei tudo, peça por peça, procurando incansavelmente. Era uma missão quase impossível, eu estava me sentindo saída de um livro da Agatha Christie!
Mas... qual meu espanto... lá estava a prova do crime... Bem no cantinho escondida por uma pilha de pratinhos de sobremesa, estava tímida e encolhida uma pequena xícara. Não estava junto com suas irmãs, talvez por pensar que não seria bem vinda. Mas lá estava ela, testemunha solitária de uma história impossível de ser recontada. Peguei a pequena xícara nas mãos, e olhei atentamente. Ela fora quebrada. Não se trata agora de saber quem a quebrou, isso não importa mais. Mas é certo que foi alguém que olhou para minha cristaleira com amor e respeito pelos meus sentimentos. Alguém que tentou desesperadamente não me magoar (imagino o sentimento de culpa), colando os caquinhos do seu deslize. Alguém que usou superbonder, que colou os dedos junto (eu sempre colo meus dedos), que usou a fita adesiva para ajudar a segurar as partes unidas. Talvez tenha feito isso no escuro da noite, com a vela acesa sobre aquele papelzinho de supermercado. Provavelmente usou o palito de dente para ajudar na colagem... Com certeza foi alguém que sabia da importância daquela pequena xícara.
Verdadeiramente me senti aliviada e confortada. A marca do que se quebrou nunca seria desfeita, assim como não se desfazem nossas cicatrizes quando alguém nos machuca. Mas saber o que aconteceu é a única forma de perdoar. E o perdão só acontece quando finalmente entendemos que as cicatrizes vão permanecer. Não existe esquecimento no perdão. Existe apenas o perdão. E com o perdão, o alívio.
Aquela estranha cicatriz de superbonder na minha xícara me fez refletir nas muitas vezes que minha alma de porcelana foi arranhada, quebrada, tornada em cacos. Na maior parte das vezes foi possível juntar e colar... refazendo o que se quebrou e passando a ostentar um bela cicatriz de aprendizado. Acredito que a cicatriz seja uma marca necessária, aquela que diz que você teve uma história.
Mas algumas vezes os cacos da alma de porcelana são impossíveis de serem resgatados e tenho que abrir mão dos menores, aqueles quase imperceptíveis que seguem incomodando, fincados na carne de nossos pés descalços. Sabemos que estão ali quando nos cutucam indesejáveis na sola do pé. A dor fininha e irritante nos faz parar, procurar uma pinça e... tentar arrancar o caquinho da carne. Mais um alívio! É o perdão entrando em ação! Acaba o choro pela porcelana quebrada! Fica a saudade e a certeza de que é hora de recomeçar, pegar os cacos que ainda tem algum sentido e... escolher. Escolher entre jogar fora os cacos com o devido cuidado para não machucar alguém com nossa dor, ou pegar durepoxi. Durepoxi? Sim, durepoxi para os caquinhos da alma de porcelana. Afinal eles podem e devem ser ressignificados, recolocados, e formar um desenho novo, um mosaico de porcelana em que as cicatrizes e partes quebradas se transformam em cores e imagens de nossa história.
Muitos caquinhos juntos formam um belo mosaico a  que chamamos de... maturidade!
Cladismari Zambon

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

CHÁ COM FRESCURINHAS...

- Que dia é hoje?
- Segunda-feira
- Não! Eu perguntei que dia é hoje, você esqueceu?
Quem já não passou por um diálogo parecido? Quem já não teve que buscar uma desculpa para o esquecimento de alguma data importante? Quem disser que nunca viveu essa situação constrangedora com certeza está faltando com a verdade, ou está com problemas de memória. Isso cabe uma reflexão com certeza.
O que faz uma data ser tão especial a ponto de merecer uma cobrança assim? Não é apenas mais um dia?Para quem esqueceu talvez seja um dia como outro qualquer. Mas para a pessoa “dona” daquela data, com certeza não é.
A percepção do tempo é um fenômeno estranho. Totalmente subjetivo. Faz com que um número que fraciona minha vida tenha um significado completamente diferente. E datas ganham significados também subjetivos. Qual é o dia do seu aniversário? O dia que você nasceu ou o dia em que você renasceu? Seria aquele dia que você passou a ver as coisas de outro modo? O dia em em que eu nasci celebra o início da minha vida, eu estava lá mas os outros dotaram essa data de significado. Eu empresto dos outros o significado desta data. Mas as datas das minhas escolhas... estas datas eu celebro porque eu dotei de sentido. São as datas dos meus vários renascimentos, das várias mudanças de rumo que minha vida deu e das quais emergiram várias outras escolhas... vários outros renascimentos. Estas datas são importantes para mim e não estão assinaladas no calendário. Estão inscritas no coração e marcam profundamente minha alma de porcelana.
Pois bem, hora do chá... Vou escolher uma xícara nova, recém comprada? Não! Vou oferecer a vocês um chá numa xícara muito especial. Essa xícara não é minha, mas eu empresto de minhas lembranças para convidá-los a tomar chá. É uma xícara branca, com flores miúdas desenhadas na lateral e nos pires. Faz parte de um jogo de xícaras que minha mãe tem na cristaleira dela. Deste jogo já herdei as xícaras de cafezinho, sem os pires que se perderam no tempo. As de chá ainda estão lá, sorrindo para mim cada vez que olho a cristaleira. Minha mãe com certeza sabe de quais xícaras estou falando e também está convidada para o chá.
Este chá não acontecerá hoje, e sim amanhã, dia do aniversário dela. Aniversário da mulher que nunca esqueceu nenhum aniversário da família. Uma mulher que renasceu várias vezes em várias escolhas e recomeços junto com meu pai. Uma mulher forte que nem sabe a força que tem. Uma mulher  sensível em suas percepções, extremamente amorosa e muito, mas muito especial. Foi com ela que aprendi a valorizar os recomeços e aprender sempre. Com ela aprendi a ver nas marcas do tempo o sinal de que a vida vale a pena.
Pois bem, mãe de tantas almas de porcelana a quem ouviu e com quem já orou, é hora de sentar à mesa que vou servir um chá para a senhora. Um “chá com frescurinhas” como meu pai, grande companheiro, costuma chamar quando vê a mesa bem posta que adoro fazer e que aprendi com minha mãe. O chá é para comemorar a vida e as “frescurinhas” são todas as pequenas coisinhas que colocamos na mesa. Enfeites gostosos mas que só tem sentido porque nós reconhecemos como parte de nossas histórias. Bolos, cucas, geléias, biscoitinhos amanteigados, tudo para acompanhar um delicioso chá de hibiscus.
Mas o mais importante, a alegria de ver nossa história, tantas vezes celebrada pelas mãos e pelo sorriso da “dona” desta data, sendo colocada à mesa. Então vamos escolher a porcelana mais cheia de histórias da casa. Aquela com florzinhas há tanto tempo guardada na cristaleira. Aquela mesmo, onde eu tomava remédio de gosto amargo quando pequena e que eu sempre busquei em minhas lembranças cada vez que a vida se apresentava “amarga”. Aquela xícara com cheiro de mãe numa cristaleira de madeira de louro na sala da casa dos meus pais. Não se trata de mais uma data, marcando o tempo da sua vida, mas de uma vitória de uma alma de porcelana, com muitas marcas e muitas histórias de superação e amor.
E agora, já sabe que dia é hoje?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CANEQUINHA...

Hoje o dia está realmente lindo. Sol brilhando... adoro cheiro de sol. Me faz lembrar coisas boas sempre... A claridade, o calor, o brilho dos raios do sol refletido em qualquer caquinho de vidro no chão... tudo fica lindo sob o sol. Acho que essa é a melhor definição que consigo ter da paixão... Acordar num dia ensolarado e ver tudo sob as cores e luzes do sol. Nada fica feio, nada fica triste, nada sem cor ou sem luz. Foi assim que acordei essa manhã... apaixonada! Apaixonada pela vida! Ainda na minha cama, vendo que o sol estava me observando através da janela, me senti seduzida a não levantar, a ficar ali, simplesmente me permitindo ser tocada por aquele raio intrometido de sol. Deixa o mundo lá fora, só mais um minuto aqui, que diferença faz? E a razão, aquele grilhinho chato que me cutuca, me trouxe de volta. Não posso viver apaixonada pelo sol sem morrer nas águas de Narciso. E foi a sensação mais suave de despertar que me fez levantar da cama e enfrentar mais um dia de trabalho, num dia de sol. Seria essa a definição de amor? Esse sentimento suave e perene de alegria que te move para frente, para a vida, para o outro? Carregar a energia da paixão amadurecida pela existência do outro é a grande charada do dia. É mais fácil trocar de objeto de paixão do que amadurecer com o outro.
E pensando nisso, vou contar a história de uma canequinha. Anos atrás, muitos anos mesmo, ganhei uma canequinha esmaltada, branca, pequena, com umas florezinhas desenhadas. Era bonitinha, mas bonita mesmo era a criança que trouxe a canequinha embrulhada num papel de presente. Era uma criança simples, um menino que eu atendia no consultório. Sempre pensei na minha profissão como um grande privilégio. Privilégio para mim, que encontrei pessoas reais e tive a oportunidade de receber delas muito mais do que o pagamento dos meus honorários. E um privilégio para quem consegue ser atendido e aceita o desafio de mudança que o simples fato corajoso de procurar ajuda implica. Pois bem, pensando egoisticamente no meu privilégio de aprender com meus pacientes, sempre recebi com alegria os que não podiam pagar. Fui egoísta, eu sei. Assumo. Mas era como o sol entrando na janela, não conseguia deixar de sorrir apaixonada para cada pequena alma que vinha brincar comigo. E eles se multiplicavam como flores desabrochando numa manhã  de primavera. E foi numa manhã de primavera, com o mesmo sol que me acordou hoje, que ganhei de um menino de olhos alegres e coração triste, a canequinha. Os olhos azuis e doces daquele menino me tocaram profundamente, nunca mais esqueci.
E ele me disse: Não é igual as xícaras bonitas que você tem, mas é de coração. Pedi pra minha mãe comprar.
Eu que não sou durona, nunca escondi sentimentos dos meus pacientes, abracei aquele menino e agradeci a canequinha linda. Tomamos um chá na canequinha nova. Depois do chá, lavamos cuidadosamente e a canequinha foi pra estante do consultório como um troféu muito precioso. O menino cresceu, não precisava mais dos meus olhares. Foi embora me deixando uma cartinha contando nossa história. Alguns anos depois recebo um telefonema, uma voz de homem perguntando se poderia marcar um horário. Quando chegou o horário programado... os mesmos olhos azuis e doces num rosto com barba. Meu menino tinha crescido, virou um homem. Os olhos dele percorreram a sala, que não era mais a mesma, elogiou os móveis novos, e parou na estante... lá estava a canequinha.
Por isso que amo acordar numa manhã ensolarada. Sempre me lembro de coisas boas que tive o privilégio de viver. Lembro com emoção e com saudade. Essas lembranças são como o brilho dos raios do sol refletidos nos caquinhos das minhas recordações. E aquilo que um dia foi paixão permanece como uma sensação suave e perene de alegria. Isso é amor!


Cladismari Zambon

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

GRAPETE...

Eu era pequena, bem pequena. Não sei ao certo a idade, mas lembro como se fosse ontem. Meus  avós moravam numa casa de madeira verde, no bairro Partenon, aqui em Porto Alegre. Lembro do cheiro da casa – incrível  como certas lembranças ficam impregnadas em nós. Essa é uma das lembranças mais caras da minha infância. Lembro que meu avô me levava no armazém da esquina para tomar Grapete... Como era bom, doce e cheiroso... o Grapete? Não, o meu avô. Não consigo pensar em Grapete sem lembrar do meu avô. E o melhor... ele contrariava todas as ordens das matriarcas da família que  proibiam qualquer guloseima antes do almoço... Lá ia meu avô, segurando minha mão pequenina, no armazém de secos e molhados tomar Grapete. Afinal, a vida é feita de regras, certo? Muitos impedimentos são necessários para que as pessoas possam conviver. Sem regras as crianças comem fora de hora e não comem nada que presta. Para isso servem as mães, para colocar regras na mesa. Eu também fiz isso com meus filhos. É necessário, é correto, é seguro. Aos pais cabe a tarefa de educar, aos avós cabem... as Grapetes!!!
Mas não é de Grapete que quero falar hoje, é de amor. Amor que transforma, amor que alimenta, amor que toca profundamente e indelevelmente a alma. Amor conjugal? Não, este é profundo mas não é visceral. Falo de amor que corre nas veias, nas entranhas, que mesmo fora de hora é capaz de gestar e trazer à vida uma criança. Aquele amor que gruda em nós quando nascemos e não desgruda mais. Amor de pais e filhos, consangüíneos ou não. Esse amor é para sempre. É ele que faz o Grapete do meu avô ser único. É ele que nos faz lembrar de cheiros, gostos, imagens e emoções sem rosto ou forma. É nestas lembranças que nos refugiamos sempre que estamos perdidos ou com vontade de quebrar algumas regras. E nossa pequena mão encontra a mão segura do adulto que nos leva de volta para o doce sabor da Grapete.
Isso é tudo muito bonito, mas... e quando nos falta a Grapete? Em que mão adulta nossa pequena mão se refugia? Pior... quantas Grapetes eu tenho a oferecer a tantas pequeninas mãos que me procuram? Por que o almoço sempre tem que vir antes da Grapete? Que venham as boas surpresas de olhinhos brilhantes e mãos pequeninas que vão encher de vida e alegria o armazém de secos e molhados de nossas vidas. Eu tenho muitas Grapetes que meu avô me reservou naquela casa de madeira verde no bairro Partenon.


Cladismari Zambon

ACEITA UM CHÁ?


Foi com essa pergunta simples que conheci, muitos anos atrás, uma pessoa incrível. Uma senhora cuja sabedoria se abrigava entre seus lindos cabelos brancos. Pequenina, aparentemente frágil, mas com força de sentimentos e opiniões formados pela experiência.
Minha resposta... Aceito sim, mas posso escolher a xícara?
Lá estava eu, na frente de uma cristaleira muito antiga, cheia de peças delicadas, marcadas por vários chás ao longo dos anos. Para quem ainda não sabe, essa é uma das minhas muitas histórias que herdei em xícaras lindas, que recebi de mãos enrugadas e cabelos brancos ao longo de minha vida. Hoje minhas mãos também começam a mostrar os sinais do tempo, e os meus cabelos só não são brancos porque ainda recorro aos avanços da indústria de cosméticos que retarda um pouco a ostentação da experiência.
Mas lá estava eu, Cladis, olhando aquela cristaleira cheia de histórias, como uma criança numa loja de brinquedos. E apontei , bem ao fundo, buscando a alma da cristaleira, uma jóia de porcelana muito fina, branca, com desenhos de pássaros. Uma xícara delicada, com a delicadeza que só aquela porcelana no fundo daquela cristaleira poderia conter.
E com um sorriso lindo de satisfação, a xícara veio parar em minhas mãos. Não preciso falar da minha alegria, e do medo de macular a pureza daquela porcelana. Afinal, tinha mais de 100 anos de chás, de histórias, de sentimentos, de alegrias e dores.  Mais de 100 anos de vida naquela xícara. 
E aquelas mãos serviram o chá com a segurança de mãos trêmulas de emoção por ver suas histórias voltarem para a mesa. Contou que aquelas xícaras foram um presente de casamento de uma tia de quem ela gostava muito, mas que por ser de uma porcelana muito fina, quase transparente, só usava em ocasiões especiais. Até que ficaram esquecidas no fundo da cristaleira. Falou de lembranças, de momentos importantes... e chorou de alegria.
Ela me perguntou... O que você vê além da poeira de uma xícara velha e manchada?
Eu me pergunto todos os dias... O que vejo além da minha própria poeira? Não seria como aquela xícara de porcelana fina, velha e manchada? Por vezes fico guardada no fundo da minha própria cristaleira, com todas minhas marcas de chás repletos de lembranças e recordações. Sou frágil como aquela porcelana, mas forte o bastante para fazer caber em mim todas as histórias do mundo. Todas as minhas histórias.
E se hoje tiro aquelas xícaras da minha cristaleira e sirvo chá para alguém em minha casa (alguns de vocês conhecem essas xícaras) com certeza ofereço mais do que chá. E recebo muito mais do uma boa conversa. E minha cristaleira se enriquece com mais algumas histórias contadas em xícaras e chás.

Agora eu pergunto... ACEITA UM CHÁ?


Cladismari Zambon
http://cladismarizambon.com/